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Quantificação de animais por residência: coerente e constitucional?
por
Renata de Freitas Martins Jurídico Associação Santuário Ecológico Rancho dos Gnomos Temos conhecimento de
alguns Municípios que possuem em vigor em seu ordenamento jurídico
normas limitadoras em relação à quantidade de animais em cada residência.
Mas será que essas leis municipais são constitucionais? Aliás, será
que essa quantificação é coerente? Analisemos
a priori a questão da constitucionalidade de uma norma municipal
que quantifique o número de animais por residência, levando-se em
consideração a propriedade. Nos
termos do artigo 5º constitucional, mais especificamente em seu inciso
XXII, é garantido o direito à propriedade. Ainda em nossa
Constituição Federal, inciso XXIII, a propriedade atenderá
sua função social. Já
em nosso Código Civil, no artigo 1228, temos, dentre outras
peculiaridades, que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar
e dispor da coisa e mais especificamente em seu parágrafo primeiro, também
é abordada a função social da propriedade, especificando-se
especialmente a proteção ambiental. Feita
a breve citação da legislação pertinente à análise em voga, passemos
então a explorar alguns conceitos albergados nos artigos trazidos à
baila. O
primeiro elemento constitutivo da propriedade, o direito de usar (jus
utendi), que é o que nos interessa, consiste na faculdade de o dono
servir-se da coisa e a utilizar da maneira que entender mais
conveniente. Porém,
não devemos entender esse direito de usar como algo ilimitado. Daí a
importância de destacarmos a função sócio-ambiental da propriedade.
Vejamos a seguir um resumo da evolução do instituto da propriedade, e
então entenderemos a atual limitação de seu uso. No
direito romano, a propriedade tinha caráter individualista. Na Idade Média
passou por uma fase peculiar, com dualidade de sujeitos (o dono e o que
explorava economicamente o imóvel, pagando ao primeiro pelo seu uso). Após
a Revolução Francesa, assumiu feição marcadamente individualista. Foi
o filósofo Aristóteles, em sua obra Política, quem primeiro
abordou a questão da função social da propriedade, defendendo a
apropriação pessoal como a maneira mais eficaz de assegurar a destinação
social dos bens – segundo ele, os homens têm direito de usar os bens não
só para a sua própria manutenção como para satisfazer a coletividade[1]: “A
administração dos bens, dividida entre os respectivos possuidores não
provocará queixas recíprocas e eles crescerão porque cada um se
dedicara aos mesmos como a um negócio pessoal, só seu; por outro lado,
as qualidades dos cidadãos farão com que os bens dos amigos sejam
comuns, como diz o provérbio, quanto ao uso [ ], e conclui, [ ] é
obviamente melhor, portanto, que a propriedade seja comum quanto ao seu
uso." No
final do século passado e atualmente, no entanto, foi acentuado o caráter
social da propriedade, contribuindo para essa situação as encíclicas
papais. Como já citamos anteriormente, a atual Constituição Federal
brasileira dispõe que a propriedade atenderá a sua função social.
Também determina que a ordem econômica observará a função social da
propriedade, impondo freios à atividade empresarial (art, 170, III) e
mais atualmente o novo Código Civil também trouxe em seu bojo a preocupação
com a função sócio-ambiental da propriedade. E
para que se discipline a citada função sócio-ambiental da propriedade,
há inúmeras leis que impõem restrições ao direito de propriedade
(Código de Mineração, Código Florestal, Lei de Proteção ao Meio
Ambiente etc.), além das limitações decorrentes do direito de vizinhança.
Todo esse conjunto traça o perfil atual do direito de propriedade no
ordenamento jurídico brasileiro, que deixou de apresentar as
características de direito absoluto e ilimitado para transformar-se em um
direito de finalidade social. Como
se pode facilmente ser notado, quando nos referimos às restrições ao
direito de propriedade, não nos referimos às eventuais leis
municipais que quantificam o número de animais em cada residência. E
não o fizemos, pois após todo o exposto, resta-nos claro que tal
regramento é inconstitucional. Vejamos. Aquele
que, em sua residência, abriga alguns animais, está apenas exercendo o
uso de sua propriedade. Quando se diz que a
propriedade privada tem uma função social, na verdade está se afirmando
que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de
propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse,
mas em benefício da coletividade, sendo precisamente o cumprimento da função
sócio-ambiental que legitima o exercício do direito de propriedade pelo
seu titular. De se ressaltar que,
em grande parte dos casos que temos conhecimento, aqueles que abrigam
diversos animais domésticos em suas residências são pessoas que os
recolheram das ruas, e, portanto, além de estarem apenas exercendo seu
direito de propriedade, usando-a como lhes convém, também exercem
importante função sócio-ambiental, pois estão provendo abrigo,
alimentação e bem-estar a animais que poderiam estar soltos à própria
sorte nas ruas, passando privações e riscos iminentes de morte, seja na
própria rua, seja nos CCZs, que infelizmente, em sua grande maioria,
ainda insistem na política arcaica e ineficaz da matança indiscriminada
de animais sadios. Portanto, dúvidas não
há que é inconstitucional essa limitação imposta por legislação
municipal. Porém, muitos devem
estar se indagando a respeito de situações em que algumas pessoas
tornam-se verdadeiras “colecionadoras” de animais em sua residência,
tendo um número excessivo de animais em um espaço incompatível. Pois
bem. Nesse momento passamos a falar sobre a coerência da quantificação,
bem como algumas regras que devem ser seguidas por aqueles que têm
animais em suas residências. Quando dissemos
anteriormente sobre algumas limitações do uso da propriedade, citamos as
limitações decorrentes do direito de vizinhança. Nos termos do artigo
1277 do Código Civil, “o proprietário
ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências
prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde
dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”. Assim,
a permanência dos animais nas residências não deverá trazer perturbação
ao direito de outrem, como por exemplo, o ruído excessivo ou perigo à saúde
pública, higiene e segurança, pois as normas de boa vizinhança deverão
ser mantidas em nome do interesse geral. No
caso de muitos animais e pouco espaço, por exemplo, aquele que pensa que
está fazendo um bem aos animais, acaba, na verdade, cometendo um ato de
maus-tratos, ferindo inclusive o artigo 225 de nossa Constituição
Federal, bem como o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais. Amontoar
animais em pequenos espaços, dando-se um passo maior do que o possível,
ficando sem dinheiro e sem ter como alimentá-los adequadamente, bem como
prover tratamento veterinário a todos, deixando de esterilizar e ainda
permitindo a reprodução indiscriminada de nada ajuda na questão do
controle e bem-estar desses animais. Talvez
este tipo de situação que legislações municipais limitadores tenham
querido evitar, porém, além de inconstitucionais, como citamos
anteriormente, acabam cometendo um ato absurdamente incoerente, pois vedam
também aqueles que têm condições de abrigar um número maior de
animais ou então permitindo um número maior de animais àqueles que não
têm espaço para tanto. Se
uma lei permite, por exemplo, que é possível ter-se 10 animais por residência.
Pensemos em uma residência com um terreno de 1000 metros quadrados e 10
gatos. Sobra espaço e caso o proprietário veja um cão atropelado em sua
esquina e queira adotá-lo, já não mais poderá fazê-lo, caso
considere-se o regramento municipal, pois a lei limita em 10 o número de
animais em sua casa. Ao contrário. Uma kitnet de 50 metros
quadrados, com 9 cães de grande porte dentro. O proprietário também vê
um cão atropelado e decide levá-lo para casa. Tudo bem... ainda está no
limite da lei... Mas, imaginem só 10 cães de grande porte em um minúsculo
espaço (e não pensem que isso é utópico... existe aos montes!).
Incoerente essa quantificação, não? Provadas
inconstitucionalidade e incoerência de legislação municipal limitadora,
importantíssimo ser dito que o que mais importa é a consciência das
pessoas em relação aos animais que têm em sua posse e suas próprias
possibilidades. Sim. Sabemos que é muito difícil fechar os olhos para
animais abandonados e maltratados nas ruas, mas infelizmente ainda não
temos o poder de nos transformar em mulheres-maravilha e super-homens, e,
portanto, “colecionar” animais não é uma atitude heróica e muito
menos solucionará o problema. Porém, o exercício
da cidadania é uma obrigação e pode trazer resultados mais satisfatórios.
Trabalhar a educação ambiental é necessário. Cobrar do poder público
uma mudança radical nos CCZs é necessário. Ser consciente é necessário.
Cobrar de políticos medidas efetivas e não eleitoreiras e que em um
primeiro momento até chamam a atenção, porém pouco tempo após
tornam-se medidas inócuas e passíveis de verdadeiros deboches é necessário.
Toda essa combinação de necessidades com certeza trará resultados
positivos aos animais. Infelizmente nada acontece da forma rápida como
desejamos, sendo um trabalho em longo prazo, porém trabalho este que não
será mera medida paliativa e sim algo realmente eficiente, eficaz e
totalmente benéfico aos animais. Somos contribuintes e
o poder público tem obrigações. Trabalhar em conjunto e cobrar sim, porém
assumir todas as responsabilidades não. Executivo e Legislativo possuem
ótimas “gratificações mensais”. Protetores possuem ótimas dívidas
mensais! CIDADANIA e CONSCIÊNCIA! [1]
ARISTÓTELES. POLÍTICA. Brasília: Universidade de Brasília,
1985. | ||
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